Por que o Zika Vírus está causando tantos problemas?

A microcefalia associada ao Zika vírus causou muita comoção. Por vários fatores. Em primeiro lugar, pelo fator humano, diagnosticar um grande número de crianças que terão virus detected 2prejuízo em seu desenvolvimento futuro. Em segundo lugar, vemos escancaradas as nossas condições de saneamento básico, de organização de ações pelo estado e de distribuição de renda que pareciam estar tomando outro rumo. Em terceiro lugar, a própria existência da entidade microcefalia, pouco conhecida pela população geral, mas bem discutida em ambientes médicos.
Finalmente, a chegada de um agente infeccioso novo, desconhecido, que gerou hipóteses persecutórios quando não sobrenaturais, mas que na verdade são discutidas no meio da infectologia: as consequências do turismo, das migrações, a globalização de agentes infecciosos.
É uma surpresa vermos tantas complicações neurológicas associadas ao Zika Virus?
O Zika vírus pertence à família dos Flavivírus. Nesta família, há um grande números de vírus neuropatogênicos, incluindo o vírus da encefalite japonesa, o vírus da encefalite transmitida por carrapatos, o vírus  do oeste do Nilo, a febre amarela, e vários outros, incluindo o próprio vírus da dengue. As manifestações podem variar de encefalites, meningoencefalites a síndromes que se apresentam com paralisias, como a Síndrome de Guillan-Barré e doenças semelhantes à poliomielite. O exemplo é o da dengue, poucas vezes lembrado, resumidos numa recente revisão:

d1.png
A lesão neurológica pode ser explicada parcialmente por fenômenos imunemediados. No entanto, há evidência muito sólida de invasão viral direta. A explicação da neuropatogenicidade está muito provavelmente associada à proteína estrutural E, que permitiria esta invasão. Também há evidência de participação de proteínas não estruturais e da proteína C viral.

Portanto, doenças neurológicas associadas a um flavivírus não representam novidades. O que resta entender é por que há aumento de casos de Síndrome de Guillan-Barre e mesmo microcefalia no Zika vírus detectado na  Polinésia e no Brasil, e não em casos mais antigos.

  • Gregorius J. Sips, Jan Wilschut e Jolanda M. Smit –  Neuroinvasive flavivirus infections. Rev. Med. Virol. 2012; 22: 69–87.
  • Marzia Puccioni-Sohler, Carolina Rosadas, Mauro Jorge Cabral-Castro – Neurological complications in dengue infection: a review for clinical practice. Arq Neuropsiquiatr 2013;71(9-B):667-671.

 

É uma surpresa vermos microcefalia  e outras malformações fetais associadas ao Zika Virus?
A teratogenicidade destes vírus também é conhecida. Não é comum a todos eles, mas alguns causam malformações parecidas com as que estão sendo observadas com o Zika Vírus. É o caso do Vírus do Oeste do Nilo, que também gerou comoção e recomendação específica pelo CDC.
No caso da dengue, existe evidência de infecção fetal e, principalmente, perinatal (próximo ao parto), mas não existe o risco de malformações que são observados com outros vírus desta família. Num estudo recente, as complicações da dengue na gestação, especialmente no período perinatal, não indicam o risco de malformações, e sim problemas comuns a outras infecções com manifestações sistêmicas:
d2
Os mecanismos celulares que justificam a ocorrência de malformações em outros Flavivírus está parcialmente explicado. No ciclo viral, o flavivírus vai ao retículo endoplasmático, onde induz processo de autofagia. Também há estímulo à proliferação de centrossomos, que já se mostrou associada à microcefalia em outras condições. Adicionalmente ocorre instabilidade cromossômica.
 Mais uma vez, mesmo que os mecanismos específicos do Zika Vírus ainda precisem ser elucidados com grande vigor, já existe informação obtida em estudos com outros flavivírus que apontam caminhos para pesquisa e respostas.
Ainda assim, outras dúvidas precisam ser resolvidas através de estudos epidemiológicos. Por exemplo, por que especificamente os vírus identificados na Polinésia e Brasil? Talvez existam outras pistas para este quebra-cabeças.
  • Centers for Disease Control and Prevention – Interim Guidelines for the Evaluation of Infants Born to Mothers Infected with West Nile Virus During Pregnancy. MMWR 2004.
  • Prabhat Agrawal, Ruchika Garg e mais –  Pregnancy Outcome in Women with Dengue Infection in Northern India.Indian Journal of Clinical Practice 2014; 24(11): 1053.
  • Jason A. Tetro – Zika and microcephaly: causation, correlation, or coincidence? Microbes and Infection 2016 – in press.

 

O que há de novo neste vírus?
Em 2014, Freire e cols publicaram um artigo analisando o genoma de isolados virais africanos (menos patogênicos) e asiáticos (mais patogênicos). Neste estudo mostraram que havia importante diferença nas cadeias de aminoácidos da proteína NS1 entre os dois tipos de isolados. Postularam a existência de duas linhagens, a africana e a asiática, esta última mais agressiva e relacionada a doenças neurológicas e problemas na gestação.
A publicação do caso de microcefalia diagnosticado na Eslovênia mostrou achados similares. O vírus identificado no tecido nervoso do feto com microcefalia apresentavaz1.png uma NS1 modificada, diferente da linhagem africana. Na verdade, o vírus isolado no tecido nervoso em 2015 era muito próximo geneticamente ao vírus isolado na Polinésia.
 Existe uma sugestão, baseado nestas duas publicações, de que a mutação na proteína NS1 poderia estar relacionada a um maior risco de doenças graves. A doença neurológica é mais facilmente explicável, por ser um fato comum aos flavivírus. Em sendo mais agressivo, mais danos neurológicos ocorrerão.
Já a síndrome da malformação causada pelo Zika Vírus depende em parte da agressividade, mas também da habilidade em atravessar a placenta e infectar o feto, mecanismo ainda pouco explicado. Mas já visto em outros flavivírus.
Na verdade, é muito tentador se pensar na hipótese da maior agressividade do vírus estar associada à uma mutação na proteína NS1.
Qual a função da NS1?
 Os flavivírus são vírus RNA e que possuem 10 proteínas. As proteínas estruturais são menos variáveis que as proteínas não estruturais, em especial a NS1. A proteína não estrutural NS1 possui diversas funções, na replicação viral, e em especial no escape ao sistema imune.
viruses-07-00219-g002-1024A estrutura da NS1 nos flavivírus ainda não foi completamente elucidada, mas já se sabe que ela possui um importante fator na sua patogenicidade. Sua estrutura geral é conservada uma glicoproteína (∼48 kDa) com seis pontes de dissulfito invariáveis. Ela pode ser secretada para o espaço intracelular em grandes quantidades, podendo ser detectada no soro de pacientes, e também se ligar às membranas celulares, através de glicosaminoglicans sulfatados (GAG).
A expressão intracelular é requerida para replicação viral e para a síntese do RNA viral de cadeia negativa. A deleção experimental de NS1 leva à prevenção da replicação e da infecção viral. A NS1 interage com diversas proteínas do hospedeiro, inclusive as que regulam a própria replicação viral.
A NS1 extracelular é alvo da imunidade humoral. É possível gerar anticorpos efetivos anti-NS1. Esta proteína viral ainda pode ser responsável por um ou mais mecanismos de escape ao sistema imune, tanto na membrana da célula como em seu interior. NS1 se liga a diversas proteínas do sistema complemento   (C1q, C1s, and C4)  e fatores reguladores (fator H, proteína ligadora a C4 e clusterina), antagonizando suas funções. A NS1 também pode atrapalhar a ação dos receptores  Toll-like  prejudicando a sinalização na resposta imune inata.
O escape ao sistema imune está envolvido em cronificação de infecções – que não é o caso-, mas também na proliferação aguda acentuada e na demora para reconhecimento e eliminação de agentes, o que seria o suficiente para gerar uma infecção mais grave.
Mais inferências sobre a virulência dos flavivírus e a proteína NS1 podem ser extraídos da literatura. Estudos prévios com a dengue (outro flavivírus bastante homólogo) mostra que a NS1 está relacionada a um dos eventos mais graves, o aumento da permeabilidade celular, e que esta pode ser prevenida pela imunização experimental com soro policlonal de cobaias ou imunização monocolonal, além de vacinação de animais utilizando como antígeno a NS1.  Em um estudo realizado no Sri Lanka, os títulos séricos de NS1 se mostraram diretamente associados à gravidade da doença, o que pode sugerir seu papel na virulência ou maior replicação viral.
12879_2014_570_fig1_html
 Ou seja, aparentemente, alterações na NS1 conferem maior agressividade aos flavivírus. A característica mais marcante seria o escape ao sistema imune, ou seja, o organismo levaria mais tempo para e reconhecer e eliminar o vírus, tempo que pode ser o suficiente para que este vírus se replique e gere todas as lesões mais graves que estamos assistindo.
Assim, as características possivelmente presentes no Zika capazes de gerar doença neurológica e malformação não ocorriam porque a linhagem africana seria rapidamente eliminada pelo sistema imune, coisa que parece não ser tão fácil na linhagem asiática, que carrega uma NS1 modificada. É uma hipótese, um caminho.
  • David L. Akey, W. Clay Brown e mais – Flavivirus NS1 crystal structures reveal a surface for membrane association and regions of interaction with the immune system. Science. 2014 February 21; 343(6173): 881–885.
  • Melissa A. Edelinga, Michael S. Diamond e Daved H. Fremonta – Structural basis of Flavivirus NS1 assembly and antibody recognition. PNAS 2014; 111(11): 4285–4290.
  • P. Robert Beatty, Henry Puerta-Guardo e mais – Dengue virus NS1 triggers endothelial permeability and vascular leak that is prevented by NS1 vaccination.Sci Transl Med. 2015 Sep 9;7(304):304ra141.
  • Shiran Ajith Paranavitane, Laksiri Gomes e mais – Dengue NS1 antigen as a marker of severe clinical disease. BMC Infectious Diseases 2014, 14:570.

 

Está tudo explicado?
Muito longe disto. Saber que existe uma linhagem mais agressiva, que existe uma proteína mutante nesta linhagem, e que esta proteína faz com que a resposta imune demore a ser estabelecida é somente o primeiro passo. Várias outras questões precisam ser pesquisadas. No entanto esta é uma linha não somente lógica, mas inicialmente verificada, que pode abrir as portas para o esclarecimento deste problema.
Precisamos confirmar se há realmente associação entre NS1 e microcefalia/Síndrome de Guillan-Barré. A dedução mais imediata, o que não é suficiente, parece indicar que sim. Não se sabe se existem explicações alternativas (menos prováveis) ou cofatores, como infecção conjunta por outros vírus, que explicariam a presença e principalmente a ausência de complicações graves.
De toda forma, não existem enigmas ou mistérios, e sim um pequeno gancho para obtermos grandes respostas.

Marcado:,

5 pensamentos sobre “Por que o Zika Vírus está causando tantos problemas?

  1. Avatar de Egle
    Egle 29 de fevereiro de 2016 às 16:44 Reply

    Excelente explanação, muito esclarecedora para nós médicos não infectologistas.
    Muito obrigada!

    Curtido por 1 pessoa

  2. Avatar de Maria Cristina Mendes Andrade
    Maria Cristina Mendes Andrade 15 de março de 2016 às 01:41 Reply

    Gostaria de receber mais informações. .no manejo com a Zica…..e laboratorial

    Curtir

  3. Avatar de Charles Santos da Costa
    Charles Santos da Costa 6 de abril de 2016 às 00:51 Reply

    Explicação mais clara que essa impossível! Resumiu o que estou tentando entender dos últimos 20 artigos em inglês sobre o assunto!!! Excelente postagem!!!

    Curtido por 1 pessoa

Deixar mensagem para Charles Santos da Costa Cancelar resposta